I
Naquele dia acordei bastante cedo. Tinha marcado aquelas análises de rotina que, principalmente a partir de certa idade, devemos fazer com alguma regularidade.
Os jornais e a televisão tinham dado como certo aguaceiros generalizados mas, os gritos das gaivotas e os raios de sol que espreitavam pelos intervalos da cortina, contrariavam as previsões e confirmavam que Lisboa já não é Portugal e que o Porto é, não só paisagem mas também clima de eleição.
Também, no Laboratório, já nada acontece como antigamente. Aquele interminável tempo de espera com povo anónimo a barafustar, crianças a berrar e com comportamentos menos ortodoxos provocados por tanto tempo fechado em salas pouco apelativas, deixaram de fazer parte do normal funcionamento desses espaços de saúde.
Marcado para as 9 horas, fui de imediato atendido e, passada meia hora já estava na esplanada da praia com o sol a tornar mais luzidia a minha cobiçada careca.
Na mesa ao lado, uma mesa redonda com 5 ou 6 pessoas, falava-se de António Nobre, da placa com os seus versos nos rochedos que rodeiam o salão de chá da Boa Nova e do insustentável desejo de voltar a ter orgulho de ser Português.
Eu, estava “Só”.
E a conversa tornou-se filosófica. Falava-se de “mais valia”, não no sentido económico-financeiro mas no sentido de “mais vale”.
No grupo, provavelmente de gente reformada com grande experiência de vida, havia um empresário e uma funcionária pública. Podiam depreender-se as diferenças de opinião que são lugares comuns. O interessante é que não havia um ataque aos funcionários públicos mas, sim, a quem os dirige.
E, aqui, entra o “mais vale”…..
Haverá funcionários exemplares, pragmáticos diligentes, que resolvem os problemas dos utentes.
Haverá outros que já não reúnem as condições mínimas para estar ao balcão ou à secretária.
E haverá os outros….
A senhora dizia que foi empurrada para a reforma quando ainda tinha muito para dar (acredito nisso porque, como diz o povo, de “chaparia” ainda estava em muito bom estado) porque o Estado, ao contrário dos privados, não consegue reconhecer a “mais valia” de um funcionário.
E contou:
- Sou Engenheira. Chefiava um departamento regional de um determinado Ministério. O meu Director chamou-me e, disse-me: Olha, tenho de fazer as avaliações e só tenho autorização para dar um “muito bom”. Como já te dei no ano passado, este ano vou dar, apesar de achar que tu é que mereces, à tua colega do outro departamento.
Até porque conhecia o sentido humanista do meu Director e reconhecia o gesto como uma forma de corrigir assimetrias, aceitei sem qualquer reparo.
Não é que, passados meses, e porque não tinha “muito bom” o Ministério me colocou nos supra numerários? Sem nada de nada, sem uma palavra de apreço por parte do Ministério, sem qualquer “mais valia”, fui atirada para o caixote da reciclagem.
Após trinta e cinco anos de serviço exemplar, com um profundo conhecimento profissional, sem um simples e metafórico louvor, que poderia eu fazer?
Revoltada, entreguei os papéis para a reforma. Não posso deixar de referir que, o meu Director, apesar de nada ter a ver com o assunto mas porque se sentiu traído pela máquina burocrática também pediu a reforma.
A conversa terminou quando a Engenheira referiu que, hoje, no lugar do Director está um jovem recém formado proveniente de uma “jota” e vereador de uma autarquia com funções politicas num qualquer secretariado de um partido político.
Para o lugar dela, foi criado um grupo de trabalho constituído por cinco elementos sem qualquer curriculum na área daquele Ministério.
Sem comentários:
Enviar um comentário