Quando a "ponta se partiu" deixei de escrever. Agora, que todo o nosso Portugal está já todo partido, lembrei-me de, sem qualquer rigor cronológico, colocar num blogue aquilo que escrevi nos últimos 40 anos, publicado ou não, com ou sem a minha assinatura mas que eu sei, é meu. A PONTA QUE SE PARTIU, também servirá para publicar estados de alma daquilo que, hoje, ouço, vejo e sinto serem responsáveis por Portugal continuar partido
domingo, 1 de abril de 2012
UMA VOLTA PELO CONCELHO (3. e 4.)
3. LAPA DO LOBO
Levantei-me bastante cedo porque, antes de partir para casa do Zé Tó, prometi ao André ir ter com ele aos Moinhos Novos onde, na companhia do pai, estava a pescar desde as sete da manhã.
Meia dúzia de peixes saltitavam dentro de um balde com água.
- Então, que tal? - perguntei.
- Está a picar - respondeu o pai do André. - Estás com pressa para ir para a Lapa?
- Não. Só queria que me mostrasse uma coisa em Vale de Madeiros.
- Queres ir aos queijos?
Engoli em seco. A referência à Quinta da Lagoa tem em mim, esse efeito. Maurice d`Ombiaux dizia que “da mesma maneira que o vinho, o queijo nunca é igual a si próprio: é tão caprichoso como o amor”. Só que o Queijo da Serra da Quinta da Lagoa também nunca é igual. Quem vai a Vale de Madeiros tem de parar lá para apreciar um queijo feito com alma. Não consigo passar o Verão sem lá ir várias vezes. Mas, hoje, não é o caso….
- Naa… Gostava de saber onde era o convento - disse.
- Isso é no Poço do Convento. Já não há lá nada mas posso contar-vos a história. Penso que também nunca falei disso ao André – comentou, enquanto lançava o anzol para o meio do Mondego.
O pai do André começou a arrumar todos os apetrechos, incluindo o último peixe que entretanto tinha sido atraído.
Depois de percorrermos o íngreme caminho que nos separava da estrada entrámos para o Todo-o-Terreno de caixa aberta e arrancámos para Vale de Madeiros.
- Pois, como eu vos disse, já não existe nada que nos referencie o Convento…
- Mas, existiu ou é uma lenda? - perguntei ao pai do André.
- Existiu. Há documentos que o comprovam.
- E em que século?
- Fins do século XIV, princípios do século XV. Os documentos que existem têm mais a ver com os escândalos que rodearam um conflito entre o rei D. João III e D.ª Filipa de Eça, abadessa do Mosteiro do Lorvão.
- Então era um mosteiro de freiras? – perguntei.
- Há quem considere que o mais provável é ter sido dúplice. Freiras da família de D. Fernando de Eça que teve 42 filhos e filhas, entre legítimos e bastardos e que seria neto de D. Pedro I e de D. Inês de Castro; padres, por parte dos irmãos de D. João Gomes de Abreu que foi Bispo de Viseu…
- Mas então…
- Não faças mais perguntas. Vale a pena saber algo sobre a luta que houve entre o Estado e a Igreja e para isso aconselho-te a ler uma publicação da Câmara de Nelas de José Pinto Loureiro sobre este Concelho.
- E então quando foi destruído o convento?
- Segundo documentos existentes foi o Cardeal Rei que, em 1560, extinguiu o Mosteiro de S. João de Vale de Madeiros e aplicou as suas rendas e encargos ao Mosteiro de Masseiradão.
O pai do André abranda o carro e diz:
- É ali. Onde está a capela de S. João Baptista que foi remodelada e substituiu o último vestígio do Convento Cisterciense.
- Não pares, diz o André para o pai.
- Paro, paro. Já que aqui estou quero mostrar-vos algumas coisas.
- Por exemplo? – perguntei.
Já fora do carro, caminhámos em direcção a uma capela.
- Esta capela chama-se de S. Nicolau. Vamos aqui pelo lado direito ver a porta lateral. Estão a ver a data?
- Sim, 1762...
- Pensa-se que esta data corresponde a obras efectuadas sendo a capela mais antiga. Vou mostrar-vos o S. Nicolau.
Entrámos na capela. No pequeno retábulo, que denuncia a sua origem no Barroco nacional, vê-se a imagem de Santa Luzia, de um Bispo nas ilhargas e ao centro a imagem de S. Nicolau.
- De que século é? – pergunto.
- Século XV ou XVI. Já por várias vezes foi pintado mas nota-se que é uma escultura de calcário policromado e apresenta um tratamento de grande rigidez…
- E então, o S. João Baptista?
- Esse é em pedra de Ançã e está na capela que vos indiquei…
- Vamos lá?
Caminhámos em direcção ao local onde supostamente existiu o convento e deparámos com a capela de S. João Baptista.
- Deve ter sido construída no final do século XVI, depois de 1560. O mais interessante é esta cruz pátea que remata a fachada e que deve ter pertencido ao convento.
Voltámos ao carro e arrancámos em direcção à Lapa do Lobo. Á passagem por cima da ponte do IC12 já se vislumbrava a recta em paralelepípedo de onde nos iríamos desviar para entrar no meio do povoado e pararmos à porta do Zé Tó.
Despedimo-nos do pai do André e dirigimo-nos para o portão do quintal onde o nosso amigo ajudava o pai a lavar uns garrafões.
- Precisam de ajuda? – perguntei.
- Não, só estava à vossa espera para irmos dar uma volta. Vamos ao Fundo do Povo. Quero mostrar-vos o que temos de mais importante – diz-nos Zé Tó.
- Temos de levar o nosso amigo à Capela de Santa Catarina. Ele gosta dessas coisas - diz o André.
- E vamos, fica a caminho. Ali em frente fica a Casa de Santiago e, ali, o Solar dos Pinas.
- São muito antigos? – perguntei.
- Não. São casas solarengas do século XIX que se encontram bem conservadas. Aliás, o Solar dos Pinas funciona como Turismo de Habitação.
- E esta capela aqui atrás?
- Exactamente. Essa é que é a Capela de Santa Catarina.
- O que tem de especial?
Entrámos pela porta que estava entreaberta e, no lusco-fusco, apercebi-me que tínhamos entrado noutro mundo em que a temperatura mais amena e o cheiro a cera queimada convidavam à meditação.
Caminhámos em direcção ao altar e parámos para apreciar o retábulo.
- As duas imagens que estão a ver são do Século XVI e representam São Sebastião e Santa Catarina.
- São de pedra?
- Sim, pedra de Ançã. A imagem de S. Sebastião está desproporcionada. A cabeça assenta directamente no tronco e o que sobressai da imagem são as setas e as feridas.
- Gosto mais da Santa Catarina.
- De facto, o seu tratamento plástico é mais bem conseguido. Mas, venham atrás de mim. Quero mostrar-vos outra coisa.
Entrámos na porta da sacristia e o Zé Tó dirigiu-se para um estandarte em tela pintada com moldura de madeira em que, de um dos lados está pintado o S. Sebastião e, do outro lado, a Santa Catarina com a roda do martírio e uma espada na mão espetada na cabeça do Imperador Maximino.
- Como vêem, as pinturas e as imagens são semelhantes - diz o Zé Tó.
Saímos respeitosamente da capela, voltando ao calor tórrido do Verão e, colocando-se na nossa frente, o Zé Tó disse:
- Tenho uma proposta a fazer.
- Atira…
- Tenho de ir a casa da minha tia a Canas. Há duas hipóteses: ou vamos à boleia ou vamos a pé.
Depois, vocês apanham o comboio para Nelas.
- Vamos a pé - responde rápido o André.
- Eu também acho. E essa de ir de Canas a Nelas de comboio, agrada-me.
Caminhámos em direcção à Estrada Nacional, passámos a Escola Primária e seguimos a longa recta que nos leva ao cruzamento com a estrada para Nelas ou para o IC12.
Após termos passado por um restaurante de camionistas, cortamos pelas traseiras de uma casa e caminhamos até à Estação de Canas de Senhorim.
- Nunca tinha vindo por aqui - disse eu.
- Pois então nunca viste ao perto aquilo que foi a primeira indústria electroquímica do País…
- Como assim?
- Espera, ainda não acabei. A Companhia Portuguesa de Fornos Eléctricos foi pioneira na indústria electrometalúrgica, com dimensão internacional. O meu avô trabalhou aqui.
- Isto agora parece uma cidade fantasma. Dava para fazer filmes do velho Oeste…
- Infelizmente. Em 1976, já na fase do declínio, chegou a ter 650 trabalhadores….
- Estás a ver aquele ramal que sai da linha principal para este cais? Foi feito em 1919 para que os comboios de mercadorias pudessem entrar dentro da fábrica.
- Então em que ano começou esta fábrica?
- A Companhia foi constituída em 11 de Dezembro de 1917 e em 1924 estava pronta a produzir.
- Mas, o que é que ela produzia?
- A resposta não é assim tão fácil. Primeiro tenho de explicar porque é que a Companhia surge nesta zona.
Quando em 1912 o Governo autorizou o “reprezamento e utilização das água pluviais e fluviais” na Lagoa Comprida, na Serra da Estrela, com o fim de produzir energia sem condicionamentos, Portugal, onde a maioria dos lares e das aldeias não utilizavam energia eléctrica, ficou com um excesso de energia eléctrica.
Aí, surge a Companhia Portuguesa de Fornos Eléctricos. Era necessário dar aproveitamento ao excesso de energia e então, procurou-se um local próximo da fonte energética e com bons acessos rodoviários e ferroviários.
- E porquê aqui?
- Esta região, para além de ter muita força politica (pela positiva e pela negativa) junto do Terreiro do Paço também reunia as condições que referi. Primeiro pensou-se em Nelas mas, as facilidades na aquisição dos terrenos aqui na Encosa foram um factor decisivo.
- Mas foi preciso trazer a electricidade…
- Em 1920 a Hidroeléctrica da Serra da Estrela pediu autorização para atravessar com as linhas de alta tensão até à Companhia.
- E então que começaram eles a produzir? - insistiu André.
- Primeiro foi o carbonato de cálcio mas, a Companhia, nunca perdeu de vista a possibilidade dos três fornos eléctricos e a oficina de serralharia serem usados para outras produções.
- Quais?
- A partir de 1946 o fabrico de ferro gusa. Nos anos 50 foram construídos 96 fornos para o fabrico de cianamida cálcica, depois carbonato e cal e, mais tarde, uma fábrica de azoto.
- Mas então, de metalurgia foi só o ferro gusa?
- Não. Nos anos 60 começaram a fabricar e exportar o ferro-liga e o ferro-silício. Nos anos 70 começaram a produzir silício-metal.
- Mas então como é que isto acabou?
- Se se lembram eu disse que a Companhia surgiu quando havia excesso de energia. O aumento do consumo de electricidade a partir da segunda metade dos anos 60 levou a que a situação se invertesse, isto é, passamos a ser importadores de petróleo e carvão. O aumento dos custos da electricidade associado ao aumento dos salários a partir do 25 de Abril levou a que a Companhia entrasse em declínio…
- Vem aí o comboio - gritou o André.
Lá longe um comboio metalizado com 5 ou 6 carruagens preparava-se para parar, não para nos levar até à Guarda mas, tão-somente, para nos deixar na estação seguinte, em Nelas.
O comboio arrancou, deixando para traz a estação de Canas de Senhorim e os seus majestosos painéis de azulejos que representam ícones do Concelho. Datam de 1941, assinados por L. Pinto e fabricados pela fábrica do Outeiro de Águeda. Neles estão representados o Hotel da Urgeiriça e o Grande Hotel das Caldas da Felgueira.
Passámos pelo Bar da Estação onde o Sr. Luís, sempre amável, nos cumprimentou. Subimos a Rua da Estação, à esquerda, e dirigimo-nos para o Altus Bar para tomar qualquer coisa fresca e para decidirmos como iríamos regressar à Felgueira. Se tivéssemos de ir à boleia, arriscávamo-nos a chegar tarde para o jantar.
Simpáticos como sempre, a Dª. Minita e o Sr. Gaspar serviram-nos um delicioso gelado que saboreámos enquanto esperávamos pela Francisca e pelo pai que nos haveria de levar até à Felgueira.
No Mercedes do Zeca, como é amistosamente conhecido, rapidamente chegámos à porta da Pensão Moderna onde, sempre a correr, o Sr. Pires e sua filha Isabel trocavam algumas palavras.
- Querem ir ao Aparthotel jogar cartas ou snooker? Estão lá muitos jovens da vossa idade - desafiou a D. Isabel.
Aceitámos o convite e entrámos no Hotel Pantanha com a D.ª Isabel e a Francisca.
- Olhem quem cá está!!! - disse eu, dirigindo-me de braços abertos para o Adérito.
- Vou cá estar com os meus avós 15 dias. Temos de dar uns passeios.
- Vamos a isso.
Entrámos no bar do Hotel e, desde logo, apreciei o bom gosto, os pormenores da decoração e o ambiente de calma. Conheço bem este espaço, pois já dormi num dos 50 apartamentos e, outra vez, numa das suites. Também já almocei e jantei várias vezes no Restaurante “Moderna”, espaço com tradição e, principalmente, com uma cozinha beirã de “se lhe tirar o chapéu”.
- Então, que vamos fazer amanhã? - pergunta o Adérito, enquanto distribui as cartas três a três para jogarmos uma canasta.
- Da nossa idade, quantos estão cá? – perguntei.
- Uns 6.
No meio da tradicional sineta que há décadas serve para alertar os hóspedes para a abertura da sala de jantar, respondi:
- Comigo e com o André, faz 8. E se fossemos de bicicleta até Senhorim?
4. SENHORIM
“Não há problemas. Estejam aqui às nove horas que eu ofereço o pequeno-almoço”.
Sempre pronto para colaborar, o Senhor Eugénio tinha na véspera garantido o transporte das bicicletas até ao Folhadal. E, de facto, quando às nove horas aparecemos na Pensão Mondego tínhamos uma mesa debaixo da parreira, o que me permitiu pensar que o nosso passeio iria correr maravilhosamente bem.
De barriga cheia, carregámos as bicicletas para as duas carrinhas estacionadas junto à palmeira do parque da Pensão Mondego.
- Vamos. Rápido, que eu tenho muito que fazer! Ainda tenho de preparar um porco para o espeto de amanhã - gritou o Senhor Eugénio.
Da Felgueira ao cemitério do Folhadal foi um saltinho e, já todos em cima das bicicletas preparámo-nos para partirmos rumo às Terras de Senhorim.
- E não se esqueçam. Digam à vossa família para amanhã irem à Pensão comer o porco no espeto. Para vocês é de graça, para compensar do esforço da pedalada – disse o Senhor Eugénio já com a carrinha em movimento.
- Obrigado – gritamos em uníssono.
Arrancámos em direcção a Nelas a pensarmos como é que iríamos convencer os nossos pais e avós a irem comer o melhor porco no espeto da região. Quando lhes disséssemos onde seria talvez não fosse difícil.
Rapidamente passámos pelo Lar da 3ª Idade e aproximámo-nos do Restaurante Dom Churrascão. Vencida a subida até à rotunda da Fonte Luminosa virámos à direita para a Rua Luís de Camões, passámos as “Quatro Esquinas”. Depois da Quinta do Pomar fizemos a curva deixando à nossa direita a casa da família Dargent, para mim uma das casas mais bonitas de Nelas. Pedalamos na pequena subida que nos iria levar ao cruzamento para Senhorim onde parámos para comprarmos pão para o almoço na Nova Padaria de Nelas.
Para a esquerda deixamos as chaminés das fábricas da zona industrial que tão importantes são para a economia do Concelho e na primeira rotunda cortámos para a direita, seguindo na antiga estrada até à Portela, parando junto a uma capela com aspecto de ter sido recuperada há bem pouco tempo.
-Esta é que é a capela de S. José? - perguntamos a uma senhora que passava.
- Não, senhora. Esta é a nossa capela. De Stº António. A de S.José é ali em baixo
Arrancámos até ao lugar indicado, depois de agradecermos a informação, estacionando lá as nossas bicicletas.
- Está fechada, disse o André enquanto tentava abrir a porta.
- Queriam visitar a capela? - pergunta um senhor de idade.
- Foi com essa intenção que cá viemos. E também queremos ver a Casa dos Senas.
- As ruínas dessa casa são ali mais abaixo e podem ir vê-las. A capela, infelizmente não a podem ver porque a minha irmã é que tem a chave e hoje foi ao médico…
- E é bonita? - perguntou o Henrique
- Se é bonita? Se vocês vissem o S. José diziam-me se é bonito. Uma autêntica relíquia do século XVII. Toda em pedra de Ançã.
- E só tem essa?
- Não. Também há uma imagem da Trindade. E a Capela é simples mas muito bonita. Vêem esta data? É de 1624. Vejam ali. Que é que diz? CHRISTOWÃO PAIZ A MADOU FAZER – 1624 Infelizmente não posso andar muito senão ia convosco à casa. Sabem, apesar de estar afastada esta era a Capela privativa da Casa dos Senas.
Percorremos a pequena distância que nos separava das ruínas da casa.
O portal principal tem duas colunas toscanas de fuste canelado que sustentam uma cornija muito saliente. Entramos. Só a escadaria em granito subsiste daquilo que deve ter sido uma casa que não deve ter sido desenhada por um arquitecto qualquer. Provavelmente por um dos melhores técnicos seiscentista.
O Solar dos Senas tem um outro corpo menos imponente e que já não tem a mesma relevância arquitectónica. Saímos desiludidos e tristes por ver um património daqueles completamente abandonado mas, já na rua ainda podemos olhar para as quatro janelas de sacada e as bases graníticas dos varandins assentes em mísulas estriadas e, na parte inferior, os óculos emoldurados com formato quadrifólio
Voltámos às nossas bicicletas e, circulando à volta da Capela de Stº António, seguimos em direcção à Vila.
Junto a uns degraus em pedra a que se segue um portão em ferro fomos estacionando as bicicletas e subindo os degraus. Estamos na Capela da Sr.ª do Viso.
Uma olaia que se encontra do lado direito foi o nosso primeiro abrigo para puxarmos das nossas garrafas e refrescarmo-nos do calor que já se faz sentir.
- A Irmandade de Nossa Senhora do Viso existe desde 1619. Sabem quem era venerado antes? - perguntou o Henrique.
- Não …
- A Nossa Senhora da Expectação ou …a Senhora do Ó.
- Como sabes? - inquiri.
- Li antes de vir para cá e também sei que o Papa Benedito XIV, em 1754, concedeu um privilégio de indulgência perpétuo aos Irmãos da Irmandade.
- Também quero ser Irmão.
- Tu não podes. És um pecador e um guloso. Ora dá cá um bocado dessa tarte de framboesa…
- E se fossemos lá em cima à Quinta do Lila? - perguntei
- Nem penses. Já viste aquela subida? - respondeu o André.
- E que é que lá há? – perguntou a Carolina.
- Em boa verdade só a casa da farmácia é que ainda se mantém.
- Há lá uma farmácia?
- Não. Houve aquilo a que os antigos chamavam botica. Aliás, antigamente, chamavam aquele lugar a Quinta do Boticário.
- Então, e se para pouparmos energias, fossemos antes ao Castelo e depois déssemos um mergulho na Quinta dos Moinhos?
- Boa ideia. Vamos para o Castelo.
Pedalámos em direcção a um pequeno esporão na margem esquerda do Rio Castelo até ao local onde existiu uma fortificação de área muito reduzida.
Encontrámos grandes blocos em granito, alguns com “almofadada”, que faziam parte das muralhas.
- Vou procurar vestígios - disse Francisca.
- Quando é que alguém se lembrou de fazer um castelo aqui? - perguntou o Tiago.
- A referência mais antiga ao castelo é do ano de 1100, mas não nos podemos esquecer que Fernando Magno conduziu a Campanha das Beiras a partir de 1037 e reorganizou o território conquistado em territórios bem mais pequenos, designados por TERRAS – respondi.
- Então isto é mais antigo do que Portugal?
- Exactamente. D. Afonso Henriques só foi proclamado Rei de Portugal em 1143.
- Então a designação de Terras de Senhorim também se deve a Fernando Magno?
- Tem lógica, não tem? - respondi.
Mais a baixo, a Quinta dos Moinhos e o Rio Castelo esperam por nós…
- Sabem o que é aquilo?
- Não!
- Uma mini-hídrica. Penso que acabou de ser construída em 2000 ou 2001 e produz qualquer coisa como 2,4 milhões kWh/ano.
- E é aqui que vamos tomar banho?
- Não. Vamos ali para a zona dos antigos moinhos. É mais seguro.
Durante mais de uma hora brincamos entre a água e as rochas do ribeiro procurando aproveitar ao máximo a transparência e a qualidade da água, retemperando forças para o resto do passeio. A viagem de pesquisa e de regresso ainda iria ser demorada.
Arrancámos em direcção ao lugar da Igreja onde, agora refrescados, rapidamente chegámos. No largo da Igreja encontrava-se o Padre Raimundo, africano que se radicou nesta Freguesia e que é bem conhecido pela sua simpatia, simplicidade e vontade de ajudar.
- Então jovens, o que é que vos trás por cá?
- Viemos visitá-lo, Senhor Padre. No fim de contas eu fiz cá a catequese - disse Eurico, o mais pequeno do grupo.
- O Eurico está a brincar. A verdade é que gostamos sempre de o ver mas, desta vez, viemos passear, ver monumentos, paisagens…
- Então, vamos começar pela minha Igreja - disse o Padre Raimundo convidando-nos a segui-lo pela porta do lado direito.
Para trás ficou o adro da igreja onde se nota ainda que era o antigo cemitério e a casa paroquial com uma inscrição na parede indicando o ano de 1761.
- Esta é a Igreja mais antiga de Senhorim? – perguntei.
- Esta não, mas antes desta data deve ter havido uma Igreja, que já é referida nas inquirições de 1258. Chamava-se de Santa Maria de Senhorim…
- E não há vestígios?
- Penso que sim. Por exemplo as colunas junto à fachada devem ter pertencido ao edifício medieval. As duas pias que estão no adro da Igreja também devem ser dessa época. As alterações mais profundas devem ter sido feitas nos séculos XVIII e XIX.
- E as imagens são desse tempo?
- A nossa padroeira, Nossa Senhora da Assunção, ali ao centro, é uma escultura em Pedra de Ançã do século XIV, provavelmente das oficinas de Coimbra. As outras imagens são dos séculos XVII e XVIII. Já que aqui estão vou mostrar-vos o chafariz…
- Pode-se beber?
- Claro que sim. E agora vamos ver a estela discóide que também se encontra aqui no adro. Este monólito foi colocado na cabeceira de um túmulo e está referenciada como sendo do século XI ou XII.
- Queremos agradecer esta lição…
- Ainda não acabou. Vou convosco até à Várzea.
-.O que é isso? - perguntou o Eurico.
- Quando lá chegarem, verão…
Enquanto alguns voltavam ao chafariz para se refrescarem, outros começaram a caminhar ao lado do sacerdote em direcção à Várzea.
- Eu sei que vocês não foram à Cagunça, onde estão seis das onze sepulturas referenciadas na Freguesia mas, como veremos, na Várzea há….
- E já agora: onde são as outras? - perguntou o André, interrompendo o Padre Raimundo.
- No Vale Covo, nas Carvalhas e no Adueiro.
- Como eu ia dizendo, a particularidade das sepulturas da Cagunça é que, uma delas é de criança.
Chegámos. Aqui na Várzea, como estão a ver são as três de adultos, estas duas antropomórficas com cabeceira trapezoidal e ovalada.
Regressámos às bicicletas, e despedindo-nos do Padre Raimundo dirigimo-nos para a estrada principal em direcção às Carvalhas.
Para trás deixámos a Fonte do Alcaide, lugar que, como o nome indica, sugere que esta zona terá tido um Alcaide sobre quem não há documentação.
Durante o percurso divisámos um grande número de carvalhos de avantajado porte e, pouco depois, chegamos a uma parte estreita da estrada onde, após uma curva, deparamos com uma capela que, na sua frontaria tem uma placa a dizer Carvalhas e que, por cima do portal tem um nicho com uma imagem.
- Que imagem é aquela? - perguntou Tiago.
- A essa sei eu responder – brinquei. - Não se sabe se é de São Geraldo ou São Silvestre.
De facto, apesar da capela dar pelo nome de S. Silvestre e ser um dos principais exemplares do Rococó tinha, em 1658, como orago, o Bispo S. Geraldo e, as duas imagens que se encontram no altar são muito semelhantes
- Agora, não temos tempo, mas quando cá voltarem vejam a pintura do S. Silvestre que está na parede lateral. É uma representação de cariz popular com grande simplicidade - informou o Tiago, que é o elemento do grupo que melhor conhece esta Freguesia.
Seguimos em direcção a Vila Ruiva pela EM 329-.2, passámos um cruzamento que dá acesso a S. João do Monte, e pedalámos em direcção ao aglomerado populacional parando junto à igreja.
- Esta capela não é muito antiga, pois não? - perguntei ao Tiago.
- Não sei dizer. A capela de Nossa Senhora das Necessidades de Vila Ruiva tem uma fachada provavelmente construída no século XIX mas, aqui nesta parte, a cruz e os dois pináculos são diferentes dos da fachada o que me faz pensar que são de épocas diferentes.
- De qualquer modo… tem algo de…
- Eu sei o que queres dizer. Parece uma cópia.
- Como assim?
- Apercebemo-nos de que alguém apreendeu formas arquitectónicas, mas quem construiu não tinha grandes qualidades técnicas.
- Parabéns. Era isso mesmo que eu queria dizer.
Montados nas bicicletas arrancámos em direcção a S. João do Monte. Para a direita, em zona mais inóspita, fica a pedreira da Laje Gorda onde a Grafidel explora os granitos que ajudam a embelezar toda esta região.
Passámos por uma das cerca de vinte “Alminhas” distribuídas por todos os lugares de Senhorim e chegamos à Capela de S. João do Monte.
- Temos de ir ver esta capela. É diferente das restantes, disse.
- Porquê? - perguntaram todos em conjunto.
- Vamos entrar para ver. Em relação às outras capelas do Concelho o retábulo proto-barroco tem duas imagens em relevo. Aqui temos o Santo Antão e do lado da Epistola o S. José. Ao centro temos a imagem do S. João Baptista, imagem do século XVI, esculpida em pedra calcária. Esta imagem aqui no nicho é da mesma época e representa, como se depreende do hábito franciscano…
- … O S. Francisco.
- Exactamente. Bem, e agora é hora do regresso. A próxima paragem é na Póvoa de Luzianes.
Depois de termos deixado deslizar as bicicletas ao ritmo da descida parámos junto à Associação Desportiva onde algumas pessoas sentadas à porta se mostraram admiradas por ver tantos jovens de bicicleta.
- Boa tarde. Diz-me onde é a capela de Stº António?
- Sim, meninos - respondeu-nos um ancião com grande amabilidade. - É ali ao fundo.
- Obrigado - respondemos em coro
Percorremos o espaço que nos separava da capela, reparando nas videiras já bem desenvolvidas para a época do ano.
- Não sei onde é mas há por aqui uma Quinta de Luzianes que, dizem os apreciadores, tem um dos melhores vinhos do Dão, disse o André.
- Por acaso ainda ontem ouvi o meu tio a dizer que esta encosta é das melhores para a produção do Dão mas, eu disso não percebo nada – respondeu a Luísa.
A visita à capela foi rápida. O seu altar é enobrecido por estrutura retabular neoclássica mas entalhada por artistas com capacidades técnicas limitadas. De qualquer modo, uma bonita e agradável capela.
Saímos da capela e, vendo já alguns sentados no muro, perguntei:
- Alguém sabe de onde vem o nome Luzianes?
- Eu sei, diz o André. Trata-se de uma estória: Houve em Nelas três irmãs de nomes Maria, Luzia e Ana. Seus pais deixaram-lhes duas quintas: uma na margem do Mondego e outra que dava passagem para esta, muito menor que a primeira. Maria ficou com a menor onde construiu uma casa e viveu até morrer. As outras foram para a quinta do Mondego. Lá construíram casas e deram origem a uma povoação muito fértil com o nome de Luzia Ana.
- E agora, em direcção ao Mondego.
A tarde aproximava-se do fim. Da Póvoa de Luzianes até à EN 231 podemos dizer que” todos os santos ajudam”. Rapidamente chegámos ao cruzamento.
Para a esquerda fica a ponte que liga o Concelho de Nelas ao Concelho de Seia e simultaneamente o Distrito de Viseu ao Distrito da Guarda
Para a direita a estrada para Nelas que seguimos, sempre a subir, até chegar ao cruzamento que nos levará novamente às Caldas da Felgueira.
Virámos à esquerda e, paralelamente ao Rio Mondego pedalámos em direcção ao nosso ponto de chegada. De repente o André parou e perguntou:
- Importam-se de vir comigo à praia fluvial? O meu pai pode estar lá a pescar.
Descemos a estrada em terra e aproximamo-nos da praia fluvial.
O André aproximou-se da água onde vários pescadores se entretinham na pesca. O lençol de água tem agora pouco volume. Estamos em pleno Verão. Mas, o fim de tarde neste local é sempre agradável e tranquilo. Ouvem-se o chilreio dos pássaros e o coachar de algumas rãs.
- Podemos ir. O meu pai já cá não está.
Satisfeitos e nada cansados, apesar do bom esticão que demos hoje, avançámos em direcção à Felgueira na esperança de um bom banho e um fabuloso jantar.
- Hoje à noite temos cá o Senhor Sampaio e o Roberto com a Banda Juvenil da Câmara Municipal de Nelas.
Preciso de saber quantos vão almoçar amanhã à Pensão Mondego…
(Publicado em 2007)
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